sábado, 2 de maio de 2015

Combustão

Um pequeno ponto vermelho único sinal (ardente) no quarto. Sem luz, preto mote lhe pus - para que nada entrasse ou saísse. Esparsas combustões rubras reavivando o cigarro aceso. Um pequeno ardor nos pulmões dizendo o meu corpo naquele lugar. Um ligeiro entorpecimento, uma náusea momentânea, sintomas do excesso. Mas há sempre a esperança de que ocorra alguma coisa, de que surja uma revelação, de que se desprenda de uma zona secreta de mim uma resolução sábia, um sortilégio varrendo áreas inóspitas. Inçar, como promessa, os dias de coisas bonitas ou flores brancas nascendo várias e sem ordem nos campos. Esse borrão ensanguentado, traído pelo fundo preto do cenário e eu entrevendo uma possibilidade para mim, algo que valide os dias que faço; um outro lado que acolha a contradição constante em que me vejo de querer e não querer a vida que me coube em sorte. Se me levantar, se acordar e se apagar o cigarro que me faz falar estando eu calado, se me vestir, se me contrariar, se me permitir chorar, se o meu corpo o consentir, deslizarei até aquela luz crua lá de fora, para lá da porta, e os meus olhos míopes, se ainda capazes, dir-me-ão as coisas pequenas da vida. Se de pés firmados no chão de rua me souber, se conseguir aprumar o corpo como a criança fascinada que descobre estatura e passo, deixarei, sem olhar para trás, este espaço que me tem refém.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2002; 2013)

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