domingo, 31 de maio de 2015

Corpágua

Os corpos pedem água. 
Os corpos pedem mãos que os comecem.
Pedem corpos que dêem corpo ao seu. 
Os corpos atravessam os dias 
E as noites dos dias e pedem água.
Os corpos naufragam e revivem na superfície da pele: paisagem longa, a perder de vista... 
A pele pede água e pede a boca que a beba, gota a gota.
Os corpos sustentam, cada um o seu, o nome que trazem. 
São livros e mapas de caminhos pregressos.
Os corpos nascem 
E morrem em si: sós. 
E pedem água: a dos teus olhos, 
A do rio dos teu olhos, 
Do mar dos olhos teus. 
O seu líquido olhar.
Os corpos são prazer e abandono: campos floridos porque há sempre flor (de dor) no chão queimado. 
E as flores pedem água... 
Os corpos falam no seu silêncio e têm recantos, lugares secretos e zonas inaugurais. 
Os corpos partem e deixam a âncora do nome. 
O nome. O dele e dum outro, a quem lhe pediu água...
A das lágrimas...

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

4

A(trevo)-me de quatro folhas: 
Em mim
   Por ti 
     Em ti 
       Por mim
          (de ti) 
            O amor.

Filipe M. | texto e ilustração (2015)

Maioridade

Se tiveres um sonho não queiras que seja teu; deseja, ao invés, que sejas dele. Repara: é da ordem das coisas que o sonho te seja maior. Se fosse teu, teria de reduzir-se ao tamanho que tens, por mais vasto que sejas; assim, serás maior em ti mesmo.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

Liberdade

Um dia perguntei-te: "Em si, o que é a liberdade?". "Duas coisas [disseste]: "O outro e o outro em ti com saber para escolher." Mas não ma podem tirar? [perguntei]". "Mesmo com grades a luz passa; assim o teu pensar"

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

Regresso

A tristeza é como viver num hotel; habituamo-nos, habitamo-la. Contudo, sempre a sonhar o regresso a  casa. 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2014)

sábado, 30 de maio de 2015

Voar

Desespero não te encontrar 
Desespero não é dor 
É dizer que não espero 
Nem por ti 
Nem por mim
Tu não existes 
Eu também não 
Não esse que fui 
Morreu de morte súbita o coração 
No dia em que dele o sentir se perdeu 
Sou jangada a braços remada 
Navegante no desarrumo achado
Muito melhor que procurar no mar 
O que foi nado em seu passado 
É nesse mesmo outro mar
Ser por um outro de ti (re)encontrado 
Para no porto à chegada
Sermos a cidade anunciada.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Uma outra forma

Sim, podes dormir o meu corpo
Hoje, quando se fizer manhã, 
Pela rua do teu corpo irei
Ficarás nu que te emprestei
Assim, um e outro trocados, 
Daremos duma outra forma 
As mãos, enamorados 

(c) Filipe M | texto e fotografia (2015)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Vivamos

Nós, os nus
Nós, os sem voz
Nós, o céu dos céus, 
Nós, o céu dos mortos. 
Porque pedimos que olhem por nós. 
Nós, os cegos que não vemos 
Vós, que o fazem por nós
Nós, os Prometeus
Nós, os do aquém do Rio 
Nós, mortais, uma só vez nascidos,
Nós, os momentaneamente nós, 
Viver saibamos o que nos foi oferecido
Rogando a vós 
Que não se esqueçam de nós 
E a saudade é uma escada para que, no subir duns e descer doutros, não morramos sós. 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

Solua

Há um lugar, num inexacto ponto do corpo, onde tristeza e alegria se cruzam. E por mais que aquela maré pez galgue o próprio mar e este se afogue de si mesmo, esta será sempre a superfície dos céus: o do sol e o da lua. 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

terça-feira, 26 de maio de 2015

Um ponto (a)final

A dado passo entramos numa clareira e tomamos esse ponto de luz como um acontecimento central. E todo o antes é requisitado na (re)leitura do itinerário da sua predição. Se acontece cair sobre aquela o termo crepuscular todo o depois é despido de sentido próprio, tomado, cá dentro, como um anti-caminho, como indevido curso, a sua retrodição. A inventiva cria essa estranha doçura que na vez de açúcar produz limalha; e custa a destrinça porque luz como a luz de outrora. Mas como um engenho de roda dentada, fez-se do que por igual desfez: uma hipótese isenta de passado e um futuro sem (an)coragem.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)


segunda-feira, 25 de maio de 2015

Percepção

Por vezes, quando é longa a jornada pedem corpo e alma tecto para descanso breve no antes da retoma.
Por vezes, só mais tarde sabemos ser aquela casa o cobro do caminho.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

A Vereda Encantada

É no instante que tomamos a inteireza de alguém. Frondoso exercício do olhar anunciador. Quem és, meu pai? Redigo: quem sou de ti, quem sou para ti? 
É um segredo fundo o fruto. Palavra demorada, enamorada e saboreada do amor por Ela, quanto d'Ela, ou não fosse do prazer, a mais bela flor do meu canteiro, que me somei irmão, porque o nasci segunda vez, no acerto de sermos filho único, ainda que por junto, no indizível e indivisível da substância una de sermos de vós, para vós. Quem és tu Pai? Pai Nosso; Pai Meu; Pai Teu (também). 
No desarrumo das palavras enuncio-te nas quatro estações: 
Primavera (Pai-Deus), quando o nosso mundo é o teu inequestionável colo; 
Verão (Pai-Vilão [q.b.]) ou, no limite, o filho que mata o símbolo para poder do desafronto seu mundo fazer na ilusão sã de que este se faz por via do outro desfazer; 
Outono (Pai-Homem), ou o mais alto grado do caminho quando o vejo cristalino no homem que é; um homem comum de tão incomum; falho quanto herói do tempo em que me é. E no defronte daquela mesa contamo-nos em vazas jogadas a cartilha da vida. Mazelas, os feitos e os desfeitos, rimos e choramos, e há os teus pais de quem falamos para que te veja filho e ver nisso o que te sou. Gosto desse homem que me és. O dobro do que sou, porque ser filho é isso mesmo, ser metade para que possas o passo antes e o passo depois do meu. 
Inverno (Pai-Menino), aquele a quem damos a mão para ajudar a levantar, a quem beijamos as mãos por nos sabermos o colo do colo há tanto (tão-pouco) tempo dado. E depois há esse olhar, o maior dos céus que me deste a olhar e o maior de todos os mundos que ensinas na palavra, no gesto, na pausa e no ensejo da eternidade. 
Posfácio: Meu pai, tu, eu e ele, meu irmão de me ser, somos-nos de amor e vamos, todos e juntos de mãos-dadas, tu, eu, ele, com Ela, mãe-menina, tua menina-mulher de ti enamorada, subir, sorrindo gratos, aquela vereda encantada. 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015) 

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Dizer

Já te disse que te amo?
Ainda que o diga, creio que é sempre menos uma vez do que devia; não por dever, mas porque uma vez dito parece que tem uma sorte de caducidade breve. 
O rio é a sua própria água muitas vezes a sua própria água. Se da boca o dizê-lo como da nascente o verbo, se escutá-lo como da foz o ouvido, então dizer o amor é como dizer a barca que, por sobre as águas, nos caminha. Dizê-lo é uma remada ganha à que se lhe adianta na falta. Daí que diga que amar-te é sempre a manhã de amanhã ou o pretexto do outro dia. Pelo menos um dia mais. Só isso; sempre mais um dia, apenas; dia-a-dia; o dia seguinte. O dia que adia o que não queremos último.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Mais

E da repetição: a liberdade 
E na liberdade: a invenção 
 Dos dias 
   Do amor
     De todos 
       O mais alto dos lugares
         O mais vasto dos altares 
           O mais belo dos absolutos.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

           

terça-feira, 19 de maio de 2015

(I)

Não me cumpro assim
Cumpro-me no mundo
Não sou de mim 
Sou do mundo o ser 
Razão do meu nascer 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

domingo, 17 de maio de 2015

Avessocitudes

O cão passeia a trela e a trela passeia o dono da trela do cão atrelado; os pés passeiam o coração e o coração passeia a cabeça (tomada aqui por razão) e esta não é dona nem daquele, nem tão pouco daqueloutros. Dizer o contrário seria crer que os começos têm fim quando a maior parte destes não! Desde quando os pés no chão e a cabeça no ar!? Um avesso muito improvável.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)



sábado, 16 de maio de 2015

Matilha

Corro p’la ruas desertas no limite das forças. No encalço, como a onda inexorável devorando a língua de areia, a matilha açulada. Sei que vou cair; inevitavelmente cairei. Exsudo um cheiro ácido (a medo) que a atiça mais e mais. Um primeiro abocanhar: caio. Depois o festim rápido e tudo tingido-se dum vermelho pastoso que, sem surpresa, sei ser o meu sangue. E o corpo a transformar-se noutra coisa, e uma cortina leve turvando o olhar, retirando-me dali. Já não sou eu quem ali jaz. Sou agora vário e vago na matilha que, saciada, corre por outras ruas da cidade que, horas antes, olhei com um estranho e premonitório sentido derradeiro.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2002; 2015)

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Onde?

Onde está a tua mão?
Lembro-me que a tua vinha buscar a minha e pelo caminho dos braços à cama tirado entrávamos o mar. 
Onde está a tua segunda mão? 
Lembro-me que escorava o meu corpo que trazias à taça da boca.
O sol arde a pele e há demasiado azul no céu; sabes o quanto me derrota a planície da memória sem a água precisada. Lembras-te!? Pedia-te as mãos para agarrares o medo no seu galope desafrontado e eu sempre assustado; bem vês toda esta vastidão do mundo e aquela praia a sul na sua noite onde os teus olhos me ouviam está tão, cada vez mais tão longínqua. E juro que a trazia comigo com carinho como a tudo o mais que me chegavas. 
Onde guardas a cama do meu corpo? Parece-me cansado do tamanho imenso da madrugada na espera da tua chegada demorada. Durmo o meu corpo (na vez do teu) sem a noite em que nos líamos de luz apagada. 
Lembras-te duma história que me contei julgando-a inventada: aquele barco que fez de nós viagem e os teus cabelos revoltos na cortina dos olhos meninos que traziam colo e a amurada onde tudo se expandia na dor da alegria da pessoa que se sente amada. 
Por onde, para quem os teus olhos para mim? Dos teus olhos o seu olhar ou a sua água de praia-mar a lamber em ternura os pés à chegada. As coisas vão-se arrumando e há regressos emalados, todavia não há albergue capaz para o que se destamanha e confesso... 
Confesso-o, miúdo na falta apanhado: nem tudo fiz como me pedi: quando foste... bem... foste e ainda não te devolvi, nem eu a mim. 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)




sábado, 9 de maio de 2015

Tamanhos

A tristeza não é um hábito;
A tristeza é o corpo no entorno da faca
E por sobre o punho fechado do metal cravado poisou a tua mão 
Abrindo cada dedo dos cinco que tem a mão como a flor no prazer 
E do medo que crescia apunhalado nasceu a mão irmã e, uma com a outra, juntas, fizeram o tamanho do coração 
Fez-se dia p'lo cansaço da noite. 
Fez-se de amor o cansaço da dor. 

(c) Filipe M. | texto e fotografia 


sexta-feira, 8 de maio de 2015

Infame

Gostar de ti é uma infâmia que acarinho. Sandice! Sei-o; isto é: sei até certo ponto. Só não sei o que é o ponto. Dito doutro modo: não sei o para lá do ponto. Fiquei em ponto-morto; pesponto mal alinhavado dum novo fato em que me sobro ao pano; ponto-cruz e seu carrego; ponto-de-embraiagem porque é preciso mudanças, dizem-me, como quem diz andança ou prego a fundo como Cristo no madeiro erguido. Bem vista a coisa, porque, duma sorte ou doutra, é preciso reviver assim como quem diz morrer sem morrer de verdade para voltar a nascer. E se revivo dessa falsa partida (por pouco  a desqualificação!) ando morto-vivo, porque do estado sólido e do líquido vai o gasoso e dizer isto é falar de nuvens, feitas caminho e daí o andar nelas ou é falar da Lua que é também via pois do mesmo modo se diz aluado. É isso... o gostar às vezes é estrada, outras desgosto e despiste, contudo estrada na mesma porque o carro também anda de marcha-atrás. Mas que fazer!? A cabeça manda no corpo, quando pode, enquanto pode; mas não pode o corpo o contrário. Dizem que é para esquecer! Pedra-pomos, limas, berbequins, contraplacados, desterros. Enfim, arremedos. A coisa vai. Mas vai por si. Autónoma. É hóspede, paga quarto e contas; tem direitos adquiridos. Creio que é regime de co-habitação e de despejos gastei a conta e fundos de caixa, não da liquidez em falta, por abrir porque custa colocar vidas em taras perdidas. Gostar de ti não sei o que faz de mim!? Gostante? (existe!?) Degustável está visto que não. Destestavál!? Nem tanto, caramba! Viável!? São glaucos os meus olhos, e vêem sítios altos aonde não chego eu ao baixo, talvez seja quando baste. Talvez seja assim.

(c) Filipe M. | texto e fotografia 



segunda-feira, 4 de maio de 2015

Agora

Quando dizia 'manhã' era a manhã que mo dizia. E de facto era manhã o que prometia. E a cama era uma saudade que se cumpria no ar da rua da janela que se abria. E eu ia. Ia p'lo caminho novo que sorria. E quando chovia, assim como hoje, como a manhã de hoje, como no preciso momento de agora, abria um chapéu que havia, todo ele de céu, todo ele de azul poesia, e eram lágrimas de alegria o que dizias. E era um contentamento molhado de roupa despojado e lembro-me como se hoje, como se agora, como se por dentro, que ambos, jograis da nossa própria folia, corríamos a agarrar ontens e amanhãs para que aquele momento; para que fossemos apenas e só aquele momento. A saudade não foi ontem; a saudade não foi amanhã. A saudade é esta manhã; esta manhã de agora. Agora.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

sábado, 2 de maio de 2015

Combustão

Um pequeno ponto vermelho único sinal (ardente) no quarto. Sem luz, preto mote lhe pus - para que nada entrasse ou saísse. Esparsas combustões rubras reavivando o cigarro aceso. Um pequeno ardor nos pulmões dizendo o meu corpo naquele lugar. Um ligeiro entorpecimento, uma náusea momentânea, sintomas do excesso. Mas há sempre a esperança de que ocorra alguma coisa, de que surja uma revelação, de que se desprenda de uma zona secreta de mim uma resolução sábia, um sortilégio varrendo áreas inóspitas. Inçar, como promessa, os dias de coisas bonitas ou flores brancas nascendo várias e sem ordem nos campos. Esse borrão ensanguentado, traído pelo fundo preto do cenário e eu entrevendo uma possibilidade para mim, algo que valide os dias que faço; um outro lado que acolha a contradição constante em que me vejo de querer e não querer a vida que me coube em sorte. Se me levantar, se acordar e se apagar o cigarro que me faz falar estando eu calado, se me vestir, se me contrariar, se me permitir chorar, se o meu corpo o consentir, deslizarei até aquela luz crua lá de fora, para lá da porta, e os meus olhos míopes, se ainda capazes, dir-me-ão as coisas pequenas da vida. Se de pés firmados no chão de rua me souber, se conseguir aprumar o corpo como a criança fascinada que descobre estatura e passo, deixarei, sem olhar para trás, este espaço que me tem refém.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2002; 2013)