segunda-feira, 30 de março de 2015

Porque...,

Porque pedras certeiras amputaram os candeeiros: o escuro das ruas;
Porque o mar galgou as calçadas: palavras afogadas;
Porque as flores não se dão ao amanhecer: campos imensos por abrir
Porque os dias são sete vezes tantos: rebanhos há sem pastor 
Porque as copas se atêm à raiz: sem sombras os céus febris no seu vazio 
Porque as marés não regressam ao mar: peixes sem sal no ar
Porque os rios extravazam o cansaço dos seus leitos: lágrimas no olhar 
Porque caem folhas: outonos no andar 
Porque as mãos são sobras: na boca míngua na vez do amor
Porque não há rotas: barcos chegam sem chegar e deles sai gente sem vontade e sem chão onde atracar
Porque não há sonhar: apenas aqueloutro lugar." 
(Outonos, 2012)

(c) Filipe M. | texto & fotografia (2012; 2015) 


sábado, 28 de março de 2015

Teatro do mundo

Se bem reparares as aves têm rumos que deixam no ar traços de pleno voo. Sim, há segredos. Se bem repares os corpos dão-nos mapas são caminhos: da boca à boca, das mãos às mãos, dos olhos os olhos. As árvores encimam sombreiam vestem-se e despem-se da folhagem e são estações quatro vezes por quatro distintas razões de ser uma só. Os rios são do mar e ambos num só são lugares para que possamos nadar as nossas próprias correntes e delas nos libertarmos, desenhando a traços de espuma rumos com verdade. 
Sim há segredos! Se bem reparares os corpos falam: a boca nascente da boca, a mão abrindo-se da mão e os olhos em flor. Se bem reparares cavalos bravos e livres com suas longas e horizontais crinas de vento sulcam altivos e verticais a invernia e o chão, como um tambor, repercute a leveza da dança pagã dos seus pesados cascos e rumam alados com as suas inexistentes asas aos esplendores dos céus. 
Os corpos são segredos: fundem-se e refundam-se num bazar de bocas, mãos e olhos; são cordas instrumentais que produzem sons de amor e clamor. 
E ressoa uma voz, a voz mesma que convoca os dias e as noites, que nos concede e tira que eleva e derruba que nos dá o alto e o raso e, por fim, se cala. E somos sós e meninos e medo mudo no esplendor do grande segredo do teatro do mundo.

(c) Filipe M. | texto & fotografia (2013, 2015) 






sexta-feira, 27 de março de 2015

Azul atingido

"No pleno do céu, em ascensional rumo, de tiro acometida, a ave ainda assim voou no azul do pano, de lado a lado estendido, e sorrindo, assim soubesse, caiu por sobre o branco do papel de vermelho atingido." 
Posfácio (2013)

(c) Filipe M. | texto & fotografia (2013; 2015)

quinta-feira, 26 de março de 2015

Passageiro

Tudo é frágil; tudo é precário; tudo é passageiro. Porque é isso que somos: passageiros. 
Nada é nosso; nada damos, nem nada nos é dado. Emprestamo-nos, uns aos outros; proporcionamo-nos, uns aos outros. 
E este tempo de gerúndio que vou vivendo tem trazido mais do que alguma vez pedi ou sonhei para mim. 
E, porque tenho tido sorte, acreditei apenas sempre mais uma vez das muitas vezes que desisti. Pequenas mortes, pequenas ressurreições numa vida-viagem feita de passageiros que me dão amor, amizade, ralhetes e que me ensinam os lugares do mundo. 
E aprendo (a custo!) que a tristeza e a felicidade são tempos e termos transitivos. Eles podem ser os veículos, mas sou eu o condutor! 
[Dezembro, 2014]

(c) Texto & Fotografia | Filipe M. 

terça-feira, 24 de março de 2015

Contudo

Não. É ao contrário! 
Falo apenas por mim, óbvio. 
A ficção imita, mal, a realidade. Quantos dias de sol trago na algibeira da alma quando desaba por fora de mim (como hoje) a mais tremenda das borrascas e outros há em que tudo é sol e trago eu chuvas imensas! 
Que deverei tomar por real e, em seu extremo de mão dada, por irreal? Se trago sol é a chuva por lá de fora que é para além de mim; e, do mesmo modo, o seu contrário. 
Da mesma sorte: quando o inesperado (sobretudo o bom) nos sucede é tão demasiado real que violenta a ficção que dele criámos. E retalhamo-lo em pequenas parcelas e recriamo-lo. O único acto de traição não é traduzir; é concretizar - uma pessoa, um acontecimento, só nos é real (real em nós, mais do que para nós) quando o 'desreslizamos'. Depois parametrizamo-lo, deglutimo-lo, enzimamo-lo até ser nosso. 
O sol dá-nos a luz e, contudo, o não vemos. É por via dele a percepção mas tudo o mais são os nossos olhos e deles os seus olhares. Sucede amiúde não vermos o defronte e vermos, tangente, o adiante. Hoje chove e todavia não chove porque me amanheceu sol.

(c) Filipe M. | texto & fotografia (2013; 2015)

segunda-feira, 23 de março de 2015

Chegante

Apenas por distração poder-se-á achar que há tangentes feitas de palavras e de gestos que nos trazem a nós essa pessoa outra; inteiramente trazida. Pessoa em nós. Pessoa alastrada em nós como o caudal do rio no encalço da foz. Não. Nunca é chegada. É chegante. Como um prenúncio ou o murmúrio duma ideia de Ser. É és isso em mim. Inaugural sem desfecho. Alvorada sem ocaso. E talvez que em céus partilhados iremos tecendo as palavras do nosso agasalho. (2014)

(c) Filipe M. | texto (2014)

domingo, 22 de março de 2015

Metade

Se me dão a flor p'la metade não é a flor que é metade daquilo que é - ela é por si e em si inteira. Nem tão-pouco me é ela p'la metade pois que a tenho inteira em mim. Quem assim ma deu é que metade do que julga inteiro. (2012)

(c) Filipe M. | texto & fotografia (2012, 2015)

sábado, 21 de março de 2015

Casa

Pelos poros do silêncio da casa pontuam sons residentes: os estalidos do soalho, o drapejar da roupa que se estende pela corda exterior, o estático dos electrodomésticos e a cadência da respiração de quem ainda dorme a vestir o frio insinuante para lá de paredes e janelas. A cafeteira ao lume acende o dia como um tranquilo ritual de passagem e há o aroma das torradas, do mel e da canela e da maçã que corto pela metade. E há o estar aqui; o gostar de estar aqui; o gostar de estar este momento. De fazer demoradamente estes gestos e este momento. Estou comigo; por casa. Esta casa nova. Uma casa antiga que me faz novo. Creio que inicialmente ter-me-á estranhado. Por vezes, questiono-me se a sua prudência inicial em dar-se(-me) mais não foi que uma avaliação a que, sem o meu conhecimento, estive sujeito. Isto é, o descortinar ela se me predispunha eu a que fosse 'a minha casa' ou, ao invés, fosse 'da casa'. Sou dela; cedo o percebi e percebeu. Desde então, damo-nos como amigos de sempre: cuido dela e ela de mim. Sem posse. Prefiro pertencer! É uma casa de gente (afã de idas e vindas), de afectos que guardam histórias que reconta na vigília do nosso sono. Se a rua é palco, por casa sou camarim. E sou eu muitos e nenhum. Por um tempo, sem o tempo confinante do relógio. E há o olhar que se detém aqui e ali, desprendido e curioso e filho do ócio ameno dos pequenos afazeres. Pequenas viagens do vaguear da mente pelo presente e passados e no giz da ardósia que encima uma das bancadas laterais garatujam-se projectos de futuros breves: o final de manhã, essa mesma tarde que se adiantará pela noite. Sou por casa sou no seu aconchego. Oiço barulhos. Portas de quartos que se abrem e na cozinha já desaguam conversas das vésperas de cada um. Digo 'Bom dia!' e dizem-me 'Bom dia!'. Vai ser! ;)

(c) Filipe M. | texto & fotografia (2015)

quarta-feira, 18 de março de 2015

Rumor

as águas beijando, persistentes, a margem: palavras repetidas numa toada morna, cantada em surdina; um rumor intervalado, um rumor contínuo, um rumor calmo, um rumor sem tempo, um rumor a tempo do amor...
A longa margem embalada, diluindo-se doce, como se por um pequeno sulco sangrada. E ínfimas partículas desse barro primordial (des)fazendo-se ao largo espaço do mar; tudo passando tranquilamente, num vazamento paulatino, outra coisa que não largamente consentido, dum lado para um outro e desse lado para um outro ainda, e assim sucessivamente, como um passo a seguir ao outro, cumprindo, tão-só, o devir do mundo... 
(2004)

(c) Filipe M. | texto & fotografia (Lisboa, 2014)



terça-feira, 17 de março de 2015

Suposição

Inaugural:
Não fui,
Não sou, 
Nem serei,
O que supus.
Não sou, por certo, o meu escrutínio, nem por incerto me acho ou perco no dos outros achar; 
Nem salvado no mar do meu,
Sonho asado 
De voo magoado.
O jugo?
Nem grande, 
Nem pequeno,
Nem assim-assim,
Há piores carregos 
(arremedo).
Nem d'aquém, 
Nem daqui, 
Nem d'além: 
De ninguém [mas filho de pai e mãe!].
De mim mesmo? 
As manhãs na mesa do pão nosso de cada dia (e)
A noite donde volto sem filhos nascidos, Filho-pai de pais envelhecidos de si esquecidos.
E no solo o corpo dizente  
Dos caminhos pregressos, 
Tantos quantos os nomes que trago silentes."

(c) Filipe M. | texto & fotografia (2015)

segunda-feira, 16 de março de 2015

Diptíco (II)

Meu amor e digo hoje, daqui, deste lugar ameno que sou, que as palavras sentaram-se à mesa do silêncio conversando a própria voz. 
E deste fez-se um outro no dentro daquele: como se do sal que mata o que nasce p'lo chão se abrissem as janelas das mãos e ouvisse o canto primeiro da manhã. E no mesmo passo com que entraram, saíram, uma a uma por seu pé, todas as palavras outrora entradas para que o que houver que sair o faça p'lo caminho da paz e com a mesma inteireza do que se foi capaz e para que haja lugar (em mim) para o novo que se faz.

(c) Filipe M. | texto & Fotografia (2015)

Diptíco (I)

Meu amor, saí cedo. Talvez não tão cedo assim. Saí. Deixei tudo como gostas (ou penso que sim). Deixei as coisas nos lugares certos; o resto trouxe comigo. Andam comigo, as coisas; são leves de peso e pequenas de tamanho, ainda que a um tempo me sejam leves e noutro pesadas, umas vezes pequenas, outras tão grandes. Ou peso-lhes e tamanho-lhes eu; não sei bem. Saí porque a boca tinha o travo do alcatrão: palavras que não se fizeram caminho. Bem sei, as palavras não existem. Mas creio que relatam o que existiu e assim sendo, existem. 
Houve uma ou outra coisa que se partiu; enfim, parte-se sempre qualquer coisa. O zelo foi o de sempre mas talvez estivesse nervoso, não sei bem. Deixei tudo como supus que gostas. Era noite sabes, a saber a manhã e talvez assim o pense porque é luz o que pensamos na escuridão. Tentei não acordar-te; sim, dormias. Sair dá mais medo que entrar. O trinco faz um clique e somos o lado de fora. 
Um dia disseste 'tenho sede' e nesse dia fiz-me água. Nesse dia disse-te 'mas e os copos,  Amor?' E disseste 'os corpos'! 

(c) Filipe M. | Fotografia: Lisboa, 2014. 




quinta-feira, 12 de março de 2015

Estranhamente

Estou de fora e vejo-me; tenho-me visitado pouco e as conversas, de mim para comigo, para além mais escassas, têm sido marcadas por um sentido ténue, mas crescente, de ausência. Acontece-me sentir saudades. Saudades do convívio ameno de ambos, em que qualquer dissidência era prontamente aplacada e arrumada na memória breve das coisas irrelevantes. Foste-te desligando do fluxo do quotidiano, da toada monótona, mas salvífica, dos dias. Há em ti uma sorte de não-vida; uma coisa não muito ostensiva, não muito vincada; antes um pequeno indício bem-educado distribuindo urbanidade, mas que na sua natureza última antítese daquilo que dá a ver. Há em tudo um alinhamento irrepreensível como um catálogo: um espaço-sem-espaço. E bem sei que por mais que até queiras gritar, por mais que ciclicamente prometas o regresso do caos, há sempre esse vidro frio (de lágrimas) afogando as tuas palavras no seu silêncio transparente. E nessa atonia, em que todos os jardins desflorescem e todos os rios se ausentam, irradia essa luz refractada, bela quanto perversa, ou um farol destinando à morte os que se amam na noite.
Filipe M. (2004)

(c) Filipe M. | Fotografia: Lisboa (2015)


sexta-feira, 6 de março de 2015

Primavera

Oculto-me no que revelo
Produzo margens 
Simétricas margens
Margem com margem 
Eu deste lado a ver-me deste lado
Eu deste lado a supor-me o outro 
De lá para cá e de cá para lá 
Como se fosse o mesmo uma e outra coisa, sabendo tão bem que assim não é; 
Vendo-me vendo-me (e só)
O rosto une desiguais
Metades 
O meu rosto é um rio 
Produzo rios quando olho 
Produzo mares quando digo
Produzo os nomes dos lugares 
Entre mim e ti há a vírgula 
Do corpo de permeio 
E nós o meio 
E nós metade 
Sem verdade, nem vontade 
Nós outrora 
e o canto breve e alto das aves 
Nós primavera a pairar e nós um arco de lado a lado para que nos víssemos passar a nado num rio certamente inventado, um de cada vez, uma e outra vez, de lado a lado
Da margem, esta ou daquela, há já tanto tempo que do tempo dessa água se fez sol em nuvens de sonhos condensados 
E produzo chuva 
para que 
de novo 
nesse 
lugar.

(c) Filipe | Texto e Fotografia: Bica (Lisboa), 2013.

quarta-feira, 4 de março de 2015

No abraço

Expando-me no dentro. 
Do espelho o convexo 
Dum pretenso real 
Da respiração a possibilidade
Do corpo subindo e descendo
No mar do abraço as pás
Do moinho a cada sopro
Escrevo a linha de costas
Voltadas ao que do amor 
Antecipei em dor.
Filipe M. 

(c) Filipe M. | Fotografia: Lisboa, 2015.