quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A boca do beijo

A simetria dos olhos como pretexto da boca; a boca o beijo e a boca afinando a simetria dos olhos.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2014)


Um topos de amor: Madeira.

Há vinte anos conheci a Madeira. Tinha 25 anos e estava apaixonado! Memória impressiva: a do cheiro quando se abriu a porta do avião. O cheiro a terra; a terra quente; a terra envolvente. Perdura, intacta. Senti que chegara a 'casa'. Ainda hoje não sei explicar este sentimento (nem preciso, nem pretendo fazê-lo); não decresceu. Cresce. 
Perdi, felizmente, a conta de quantas vezes lhe regressei. Mas sem habituação, antes um sempiterno deslumbramento e agradecimento íntimo. 
É um sobressalto ver o largo anfiteatro do Funchal uns minutos volvidos após a saída do aeroporto de Santa Cruz. Cidade sobre o mar, cidade recostada nas serras. Mar e serra em par. 
Fiz amigos e ganhei 'famílias'. Sou feliz lá. Reencontro-me, oiço-me; perdoo-me. A Madeira já me conhece; eu conheço-a mal. Vou conhecendo-a devagar como mandam as coisas de (a)mar. Quando morrer quero ficar nesse (neste) mar que, naturalmente, se fez o meu (re)começo; faz sentido que se faça fim ou, melhor, eternidade. 
Todos temos um sítio 'secreto' onde nos imaginamos estar; quando estou naquela varanda do mundo e todo aquele (a)mar defronte não preciso de mais nada: estou completo. Feliz. Uma felicidade Maior: (a)Deus, que sinto Presente. 
Passaram vinte anos sou outro; descobri silêncios e o entendimento fundo do que é a tristeza e, precisamente por isso, descobri uma forma outra de ser feliz. Menos exuberante, menos exterior. Talvez. Mas abriram-se caminhos gratos que me couberam no a par-e-passo do muito que lá (cá) caminho. 
Aquele (este) mar é tão da ordem do Belo que acredito, em parte, se fez ilha para que o pudéssemos ver altaneiros. Há vaidades justificadas e, convenhamos, desculpáveis. É lá que estou neste momento; nesse diptíco mar-terra e terra-mar... 
Hoje (de há muito, aliás), é, sobretudo, um lugar de pessoas. De quem gosto. Muito. O meu topos de Amor. 
Obrigado a todos vós. :)
Filipe M. 

(c) Filipe M. | fotografia: Mar da Madeira, 2014. 



segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

E depois do amor?

Há uma nudez própria no que se veste. O dizermo-nos duas vezes; o haver um 'por último', coisa outra que não um lugar primeiro. 
O sermos contáveis. 
Os corpos: segredam, fundem-se e refundam-se num bazar de bocas, mãos e olhos; são cordas instrumentais que produzem sons do clamor do amor.
E a jornada é por dentro, onde caminhos estreitos conduzem a largos sítios, e, como em tudo na vida, o seu inverso: larguezas que se estreitam. 
E na boca a pergunta: 
E depois do amor? 
Digo: sou, em certa medida, o teu nome. 
Restou-me a palavra em teu nome. 
Depois do amor o amor é um nome.
Sou o teu nome.
Nem alegre,
Nem triste.
Respiração.

(c) Filipe M. | Texto e fotografia: Funchal, [2014]. 


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Praia-amar

Desse vazio; de ausência; de vagar; calcinados descaminhos (em redor). Cintura de dias urbanos ou muralhas para que não dilatam. 
Dias obsidiantes. 
Poucos já muitos nem por isso não sei. 
Há um lugar vago.
Dizem-me coisas 
muitas coisas e não sei se oiço não sei se compreendo não sei se sei 
E que me digo que me oiço
Escorrego no teu rosto perco o teu rosto perco o teu rasto 
Há um lugar vago
E ainda há dias assim; assim como? Com corpo com cheiro com farrapos de palavras desenhadas à mão levantada. Não sei o que são ou ainda por serem ou já não serem dias nem eu nem tu
Há um lugar vago
Digam-me tudo que ouvidos generosos os meus tudo ouvem calo tudo porque a boca perde para o par. 
Queimam esses dias estes dias os dias do porvir mas que venham e ardam na pira 
Há um lugar vago
Devagar vagou
De vago a vaga que por sobre a praia-mar findou...

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2014). 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Novelo

Refaço começos assim como os novelos são rumos de lã: compromissos do querer entre as mãos e o olhar. 
O deixar andar não é nem andar nem lugar para ficar.
Andar não é coisa que se deixe; 
é coisa de se fazer com os pés, por assim dizer.
Faz-se e refaz-se o que se desfaz como quem monda a terra porque é dela o alimento.
E assim como as searas crescem sob o olhar branco da lua, têm meus os sonhos alto patrono: o sol a nascente e a poente, no rir e no chorar.

(c) Filipe de Macedo | texto e fotografia: Madeira (2014). 

domingo, 18 de janeiro de 2015

O ontem amanhã

Possas tu
Parti (por ti)
Quisesses tu salvar-me [de mim]
Vem abaixo da pele e abre portas para que possa sair [de mim]
Acende a manhã porque se fez noite [em mim]
Vem buscar-me porque fiquei aqui 
Neste lugar de ontem.
Dá-me um céu para onde olhar e sair possam do mesmo chão estes pés feitos para outro caminhar
Dá-me a mão, como o farias a um cego, e dar-te-ei a minha e seus rios de amar
Dá-me o teu silêncio e serei (nas) palavras inauditas 
Diz-me como regressar-me e (para) quem sou. 
Reparo que vivo. 
Mas, sabes, é por fora que vivo. 
Quando regresso em noite e quando me deito há casa e cama mas não me sei, nem para onde;
Percorro a noite até a cansar, para que por fim me deixe dormir e volto a ti, como uma evidência, como o lugar que fui. 
Naturalmente haverá uma manhã e serei amanhã sem amanhecer e imitarei o dia até ao fecho do seu arco. 
À saída da barra, donde a viagem, e os olhos longos e os cabelos, teus,  na moldura do rosto, revoltos como as aves do séquito, vi-te, assim, inteiramente tu, e soube da alvorada e fui, ali, naquele preciso momento, feliz; como antes, como, talvez, depois.

(c) Filipe M. | texto e fotografia / Madeira, (2014). 

sábado, 17 de janeiro de 2015

Ígneo.

Acende-me 
Arde-me
Destrói-me
Morre-me 
Por uma vez, inteiro 
Por uma vez, derradeiro.

(c) Filipe M. | texto e fotografia / Londres, (2014). 


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Religar

Às vezes, consegue-se: a suspensão de tudo. Um abrandamento da máquina e tudo em nós num mínimo básico - funções vitais. 
Não há corpo, nem tempo. Torpor. Uma sensação tépida, uterinamente cálida. Imerso, quase na totalidade, com os olhos fitos exactamente na linha de água; e estou ali. Num silêncio aquoso numa profunda paz. Gosto daquele azul que tinge a água do pigmento da luz. 
É um regresso, em sensação, a um estar inicial. E olho aquele corpo transfigurado, ondulado, impreciso, não meu, e percebo-o saciado. Quieto, finalmente! Dessa fome de existir que se impõe por vezes demais. 
Ali, naqueles instantes frágeis, tudo é difuso: o ontem sem mágoas, o futuro em branco. 
Até o som parece um pássaro esvoaçante de inquietação quando acontece entrar ao engano num lugar só humano. 
E fecho os olhos e lentamente reabro-os e fecho-os e sinto paz.
 Ocorre-me pensar algo que um velho me ensinou: Somos nós o mar; é em nós que ele habita. 
Assim é: Sou água dentro de água. Talvez seja isso a (minha) paz; quando dou a minha água à água e esta se dá a mim. 
E penso uma outra vez nesse velho sábio que me disse: Religião é religar, é unir por vontade, o que é diverso e assim é suposto ser. E dos vitrais daquela cúpula de vidro faço a minha igreja e acolho a luz como um abraço que me falta. 
Estou em paz. Mergulho e já posso ir ter comigo.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015).

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O corpo & a Culpa: 'Philomena'.

"O corpo, e dele a sexualidade e o prazer, é campo (ainda) de múltiplos interditos. Que o diga a Igreja, cuja modelação da sua percepção simbólica e práticas visou, não há muito, a sua neutralização e adestramento. E fê-lo sob o manto hediondo da culpa, polícia interiorizada de cada indivíduo, redundando numa clara distorção do que pode e deve ser uma ética pessoal conducente a um imperativo, por maioria de razão, cristão, mas não só, de felicidade. Aliás o livro V da Bíblia, 'Cântico dos Cânticos!, ilustra a beleza do corpo, da sexualidade e do Amor e, não por acaso, tão ignorado. O filme 'Filomena' é também sobre isto. A inculcação duma culpa, a punição abjecta dum suposto pecado; isto é: uma anti-Igreja geradora de dor, de perpetuação dessa dor, e cujos fautores (no caso as freiras irlandesas que 'acolhem' jovens mães adolescentes) ilustram à saciedade aquilo a que os gregos chamaram Húbris - o orgulho; a soberba dos que se julgam detentores da Virtude como uma espada inclemente. Mas é mais: é também sobre o reajuste e o resgate da memória e dos afectos (tão-só aparentemente) desbaratados, da auto-percepção da culpa e da sua superação. É, em determinada instância, um filme de reencontros. E se as clivagens são próprias do património geracional de cada personagem é na sua confrontação que resulta o desenho das limitações inerentes a cada uma delas, o que equivale dizer que todas comportam afinal 'uma visão do mundo'. Mas o que subjaz é que tal facto pode não ser um fatalismo. Assim haja vontade. É também uma história (paralela) de rumos convergentes. Longe de fazer do Amor uma jornada delico-doce, 'Filomena' retrata com fidelidade que este é, a mor das vezes, um lugar de chegada e não um dado adquirido à partida." F. Macedo

'Philomena',2013
Realização | Stefen Frears
Interpretação | Judi Denche; Steve Googan

(c) Filipe de Macedo | Fotografia: Madeira, 2014.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Amarelo (I)

"amar é um elo

entre o azul

e o amarelo"

Paulo Leminski


(c) Filipe de Macedo | fotografia: Madeira, 2014.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Do(s) amor(es)

"Maria gosta de José e este dela, por igual.
Maria e José gostam de Maria e José, seus filhos.
Maria e José gostam de Maria e José, seus pais.
Maria e José, irmãos, também se gostam entre si.
Maria, José, Maria e José são uma Família Feliz.
Maria gosta de Maria e esta daquela, por igual.
Maria e Maria gostam de Maria e José, seus filhos.
Maria e José gostam de Maria e Maria, seus pais.
Maria e José, irmãos, também se gostam entre si. 
Maria, Maria, Maria e José são uma Família Feliz.
José gosta de José e este daquele, por igual.
José e José gostam de Maria e José, seus filhos.
Maria e José, irmãos, também se gostam entre si.
José, José, Maria e José são uma Família Feliz. 
Eu sou o Luís, mas sou qualquer uma das Marias;
eu sou o Luís, mas sou qualquer um dos Josés.
Tenho família eu sou Feliz."
FM

(c) Filipe de Macedo | Fotografia: Lisboa, 2015. 


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Janeiros: novo no tempo

Não há um tempo velho, nem um tempo novo. Fazemos-nos velhos ou novos no tempo. E ser-se novo foi o termos sido velhos, isto é: o termos sido antes. Ontem foi amanhã. Sermos tempo a tempo é acordar abrindo-nos em janela de par em par.

 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2015)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

da cara...

Às vezes a cara fica-nos nas mãos. Repartida entre uma e outra, assim como são dois os olhos, cada uma dona da metade do todo que vemos. E no afago ou no aperto doutras se espalha o ver assim como as abelhas que, de flor em flor, semeiam em ventos outras vindouras flores e estas semeiam as abelhas de ir e vir  Às vezes os olhos cruzam-se com outros, par com par, ou uma ponte por entre margens, e nasce um olhar coisa diversa do ver. Assim como barcos ensaiando o desfecho do líquido caminho mas represos pela âncora que de tão funda não se dá a ver. E do olhar o advento das mãos, que, de par em par, constroem corpos que se beijam como se falassem como se fossem corpos na vez de corpos. E as mãos vêem o invisível e vêm à tona da pele dizer da ventura do prazer e do inaudito do amor que se faz, assim como as abelhas fazem flores e estas fazem abelhas. As mãos sobem aos olhos porque vêem como se tocassem ou, como charruas, inventassem caminhos que dão para caminhos que dão para mais caminhos ainda, pretextos para caminhar os caminhos dos lugares de lugar nenhum pois que somos apenas o que soubermos sonhar. Sabemos todos que os olhos do olhar ventam os campos e estes convocam os moinhos as flores e as abelhas e que os peixes voam assim como há pássaros a nadar; sabemos todos que entre dois olhares há uma tela em branco para que tudo se possa inventar assim como sei que existes e por isso nos damos nomes para nos chamarmos para que da palavra nasçam os olhos para que nasçam as mãos e troquemos de corpos assim como as abelhas são flores e as flores são abelhas. Às vezes cabes-me nas mãos e trago-te no olhar e por isso te digo: dizem o meu nome quando sou o teu.

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2014). 

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Janeiros: bom dia.

"Pelos poros do silêncio da casa pontuam sons residentes: os estalidos do soalho, o drapejar da roupa que se estende pela corda exterior, o estático dos electrodomésticos, a cadência em fole da respiração de quem ainda dorme a vestir o frio insinuante para lá de paredes e janelas. A cafeteira ao lume acende o dia como um tranquilo ritual de passagem e há o aroma das torradas, do mel e da canela e da maçã que corto pela metade. E há o estar aqui; o gostar de estar aqui; o gostar de estar este momento. De fazer demoradamente estes gestos e este momento. Estou comigo; por casa. Esta casa nova. Uma casa antiga que me faz novo. Creio que inicialmente ter-me-á estranhado. Por vezes, questiono-me se a sua prudência inicial em dar-se(-me) mais não foi que uma avaliação a que, sem o meu conhecimento, estive sujeito. Isto é, o descortinar ela se me predispunha eu a que fosse 'a minha casa' ou, ao invés, fosse 'da casa'. Sou dela; cedo o percebi e percebeu. Desde então, damo-nos como amigos de sempre: cuido dela e ela de mim. Sem posse. Prefiro a pertença! É uma casa de gente (afã de idas e vindas), de afectos que guardam histórias que reconta na vigília do nosso sono. Se a rua é palco, por casa sou camarim. E sou eu muitos e nenhum. Por um tempo, sem o tempo confinante do relógio. E há o olhar que se detém aqui e ali, desprendido e curioso e filho do ócio ameno dos pequenos afazeres. Pequenas viagens do vaguear da mente pelo presente e passados e no giz da ardósia que encima uma das bancadas laterais garatujam-se projectos de futuros breves: o final de manhã, essa mesma tarde que se adiantará pela noite. Sou por casa sou no seu aconchego. Oiço barulhos. Portas de quartos que se abrem e na cozinha já desaguam conversas das vésperas de cada um. Digo 'Bom dia!'; também me dizem 'Bom dia!'. Vai ser! ;)

(c) Filipe de Macedo | Fotografia: Funchal, 2014. 



Janeiros: abismo

Desço p'lo meu corpo náutico 
ao silêncio azul do teu mar

(c) Filipe de Macedo | fotografia: Madeira, 2015.

Janeiros: Quadricírculo.

'Quadratura do círculo'

(c) Filipe de Macedo | fotografia: Madeira, 2014. 

Janeiros: em mim

E talvez que sob o mesmo céu partilhado teçamos palavras de agasalho."  


(c) Filipe de Macedo | Fotografia: Madeira, 2015. 


Aceso.

Acendam os sóis; 
acendam as velas dos barcos e todas as lâmpadas que tem o sonhar; 
acendam os dias e suas noites pares; acendam as cores e os olhares; acendam os corpos com os lábios das mãos; 
acendam o amor em camas de mar; acendam a alegria porque nos faz rir; acendam-se para quem por bem vier; acendam-se ao que está por vir; acendam os mortos que nos vivem; acendam os vivos porque nos adiam a morte; 
acedam as flores porque calam a dor; acedam todas as palavras inaugurais; acedam os poemas e os seus infinitos céus; 
acendam as lágrimas e o espanto por tudo o que há de Maior em nós; acendam gestos redentores; 
acendam o prazer que foi prenda de Deus; 
acendam paz porque é caminho; acedam a Vida! 
Hoje é apenas o fim dum ontem; 
amanhã é apenas o fim dum hoje; 
depois de todos os amanhãs é apenas um princípio de eternidade ou do amor as primícias. 

(c) Filipe M. | texto e fotografia (2014). 

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Janeiros: os velhos

"Velho(a), adjetivo ganho ao tempo. Andarilhos da memória. Doces, rabugentos, sorridentes, entristecidos, esquecidos. Flores de rua a quem dão a mão no convite da viagem. Nos seus bordões resistem à inclinação dos dias, ao fraquejar da firmeza das ruas, à tibieza do esquecimento e às bermas das vias-rápidas do utilitarismo voraz. Gosto dos meus velhos; agradeço os meus velhos. Vasos de todas as guerras, porta-tudo: os filhos que são, os pais que são, os avós que são, os irmãos, amigos e vizinhos e amantes que são e, ainda e sempre, os meninos que são! São. Existem, vibrantemente opacos. Olhares marinheiros, mãos nodosas, mãos raízes que nos dizem que são árvores os lugares onde paramos para sabermos quem somos. Os velhos dizem-nos meninos os nossos pais. E num instante os nossos próprios pais são velhos e dizem aos nossos filhos que ainda temos medos meninos. Às vezes, vejo-os em docas secas privados das suas marés e não perceber que são as nossas praias que morrem da míngua das águas que lhes são supostas. E não perceber que, generosamente, são eles as telhas que que travam a borrasca ou a inclemência dos sóis desta juventude vã e adorada e como aos bezerros d'oiro. Apeadeiros do nosso cansaço, unguento das nossas feridas. E, às vezes, pedem-nos apenas colo, direito de amor dessa meninice ganha à idade dos dias, ao fraquejar dos dias, dos dias que, distraídos, lhes retiraram amores onde mora pleno o desejo e fizeram de seus pais e filhos criados (quando os há) uma infinita lonjura de saudade. Os velhos são escadas de farol. Bato-lhes à porta e subo por seus degraus de caracol e acedo à montra dos seus olhos: salas todas elas de vidro das quais diviso seus vastos mares e seus barcos vários de viajar. E quando tenho medos (oh, se os tenho!) peço-lhes porto nas suas mãos de faroleiros que acendem lâmpadas grandes, e estas, girando a trezentos e sessenta graus, alumiam-me e dizem do infundado dos meus medos e devolvem-me à cama, ajeitam-me a roupa e beijam-me os sonhos, ternos como algodão-doce de feira e prodigiosos como os dias de ida ao circo. E na acalmia das minhas tribulações soltam as amarras desse mundo, que, generosos, me dão a ver e que, talvez com sorte, quiçá, poderei vir a Ser. Isto é: um rabugento e venturoso velho de mãos abertas ao mundo até ao derradeiro grau da ampulheta mágica...!" Filipe M.

(c) Filipe de Macedo | Fotografia: Praça da Restauração, Funchal (2015).

Janeiros: Abris

Pouco importa, meu amor. A flor desse abril deu-se ao tempo, afinal o abraço que aconchega ou o prefácio do que é final. A notícia chegou antes da boca, antes das palavras, antes desse olhar. Disse-me um outro, disse-me o frio do corpo e uma lonjura que começa sempre pelas mãos. Ah! Essa audácia que fez delas aves do impossível? dum jeito de se emprestam ao céu. E nesta manhã de agora, há um vento que me salpica de rio, na cidade que chove como se chorasse por mim. 
Filipe

(c) Filipe de Macedo | R. do Século, Lisboa, 2014

Janeiros: início

"E há a tua boca. 
A tua boca falante. 
A tua boca silêncio. 
A tua boca e a minha boca. 
O beijo. 
E o início do teu corpo no fim do meu corpo. 
E coloco a minha sombra pelos teus ombros e desço a ti porque começo onde acabas."
Filipe M. 

(c) Filipe de Macedo | Fotografia: Funchal, 2014.