quinta-feira, 12 de março de 2015

Estranhamente

Estou de fora e vejo-me; tenho-me visitado pouco e as conversas, de mim para comigo, para além mais escassas, têm sido marcadas por um sentido ténue, mas crescente, de ausência. Acontece-me sentir saudades. Saudades do convívio ameno de ambos, em que qualquer dissidência era prontamente aplacada e arrumada na memória breve das coisas irrelevantes. Foste-te desligando do fluxo do quotidiano, da toada monótona, mas salvífica, dos dias. Há em ti uma sorte de não-vida; uma coisa não muito ostensiva, não muito vincada; antes um pequeno indício bem-educado distribuindo urbanidade, mas que na sua natureza última antítese daquilo que dá a ver. Há em tudo um alinhamento irrepreensível como um catálogo: um espaço-sem-espaço. E bem sei que por mais que até queiras gritar, por mais que ciclicamente prometas o regresso do caos, há sempre esse vidro frio (de lágrimas) afogando as tuas palavras no seu silêncio transparente. E nessa atonia, em que todos os jardins desflorescem e todos os rios se ausentam, irradia essa luz refractada, bela quanto perversa, ou um farol destinando à morte os que se amam na noite.
Filipe M. (2004)

(c) Filipe M. | Fotografia: Lisboa (2015)


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